Clara começou a sexta-feira como tantas outras: o despertador tocou às 6h 15, o cheiro de café invadiu o apartamento e as notificações do celular a lembraram de quantas tarefas precisaria fazer naquele dia.
Mas, naquela manhã, algo a incomodava mais do que o barulho do trânsito; uma pergunta antiga martelava: “Afinal, o que é ser feliz?” Decidida a não adiar o dilema, Clara transformou o trajeto até o trabalho numa expedição filosófica — cada quarteirão iluminado pelo reflexo de séculos de debates sobre a felicidade.
Logo na porta do metrô, ela encontrou Tomás, seu vizinho de andar, que sempre lhe oferecia um sorriso genuíno.
Ele lembrava Sócrates, pensou Clara: vivia perguntando a todos sobre justiça, coragem, prudência. Certa vez, Tomás recusou uma promoção porque envolveria manipular dados para clientes. Preferiu manter a virtude intacta a ganhar mais.
Clara percebeu que, para os socráticos e platônicos, ser feliz é cuidar da própria alma, mesmo que o bolso reclame. Ela se perguntou: quanto de minha paz interior troquei por conveniências?
Três estações depois, Clara desceu e passou pelo parque.
Viu a amiga Helena treinando corrida, disciplina exemplar. À noite, Helena estudava violoncelo; nos fins de semana, fazia trabalho voluntário. Aristóteles chamaria isso de eudaimonia — florescer ao longo de toda a vida, equilibrando razão, virtudes e bens externos na justa medida.
Clara lembrou de quando tentou aprender francês por três semanas e desistiu: talvez a constância aristotélica fosse o elo perdido entre seus projetos e a satisfação duradoura.
Na esquina do escritório, um perfume de pão recém-assado dominava o ar. Clara viu Paulo, colega de trabalho, sair da padaria com uma sacola e rir em voz alta junto ao casal de amigos que o acompanhava.
Paulo costuma organizar piqueniques simples, desligar o celular e saborear cada gole de café como se fosse raro. Epicuro aparecia ali, traduzido em vida cotidiana: prazer tranquilo, ausência de dor e perturbação, buscado em companhias confiáveis e hábitos frugais. Clara anotou mentalmente agendar um jantar caseiro, sem fotos para as redes — apenas risadas.
O céu nublou de repente e uma chuva forte caiu.
Algumas pessoas que estavam passando xingaram toda aquela quantidade de água. Outros abriram o guarda-chuva inquietos. Só um senhor de terno gasto permaneceu sereno, braços cruzados, observando as gotas.
A imagem lembrou-a dos estoicos: aceitar tudo o que não depende de nós, dirigir o querer ao que se pode mudar. Talvez, pensou Clara, deixar de lutar contra variações meteorológicas internas — lembranças tristes, prazos adiados — fosse um atalho para a apatheia, a tranquilidade que nasce quando a vida deixa de ser batalha contra o inevitável.
Chegando ao prédio onde trabalha, Clara atravessou o saguão que abrigava uma pequena capela. Ali, todas as manhãs, Luciana acendia uma vela e fazia uma breve oração antes de começar a contabilidade do dia.
Para Agostinho, só a união amorosa com Deus sacia verdadeiramente; para Tomás de Aquino, a visão beatífica é a forma máxima de bem-aventurança, iniciada aqui em atos de caridade e cumprida além do tempo.
Luciana doava parte do salário a um abrigo de idosos — prática que, aos olhos tomistas, une virtude moral e graça divina. Clara, mesmo não sendo religiosa, sentiu respeito pela paz que aquela dimensão transcendental parecia oferecer.
No horário de almoço, a equipe discutia quais projetos cortar para caber no orçamento anual. Gabriel sugeriu avaliar impacto total em vez de lucro imediato: “Se a plataforma que vamos descontinuar ainda ajuda centenas de pessoas a encontrar emprego, será que vale economizar?”
Era o utilitarismo na prática — maximizar o bem-estar do maior número. Em seguida, surgiram dilemas sobre confidencialidade: divulgar problemas técnicos ao cliente agora ou esperar solução?
Clara lembrou-se de Kant: cumprir o dever pela obrigação moral, não por ganho. Divulgar era desconfortável, mas era o “imperativo categórico” em ação. Fazer o certo poderia custar bônus, porém prometia a “felicidade digna” de quem possui a consciência limpa.
À tarde, ao rever um relatório de fraude, Clara sentiu o cansaço pesar. Perguntou-se se todo esse esforço corporativo tinha sentido. Lembrou das aulas de literatura em que leu Nietzsche. O filósofo convidava a afirmar a vida com suas dores e criar valores próprios — transformar fraquezas em potência, praticar amor fati.
Talvez, pensou, ela pudesse ver cada planilha como degrau para a independência que sonhava: o curso online de fotografia que desejava lançar há anos. Foi então que Julián, colega chileno, confidenciou que largaria o emprego para viajar com uma ONG. Kierkegaard e Sartre teriam aprovado: existir é escolher-se, assumir riscos, viver autenticamente ainda que o mundo julgue absurdo.
No fim do expediente, o chefe avisou que o banco de horas seria alterado para exigir mais presença física. Um murmúrio de desânimo tomou a sala. Clara lembrou de Freud lendo num café: a cultura impõe renúncias que estrangulam desejos, fazendo da felicidade algo sempre incompleto.
Marcuse diria que só repensando as estruturas — talvez migrando para jornada flexível, cooperativas ou renda básica — se abriria espaço para alegria menos reprimida. Clara sentiu o peso de ter de negociar cada pequena parcela de tempo livre com um sistema maior que ela.
Antes de voltar para casa, decidiu caminhar.
No parque, viu um grupo praticando meditação guiada. A instrutora citava a pesquisa contemporânea sobre bem-estar subjetivo: pessoas relatam mais satisfação quando dormem bem, cultivam vínculos e têm senso de propósito maior que elas.
Falou também de mindfulness budista, a atenção plena que estabiliza a mente ao observar sensações sem julgá-las. Por fim, distribuiu cartões com os cinco pilares PERMA da Psicologia Positiva: emoções positivas, engajamento, relacionamentos, significado e realizações.
Clara testou ali mesmo: respirou fundo, notou o aroma de terra molhada, lembrou-se de uma amiga querida, pensou no projeto de ensino de fotografia e sorriu discretamente. Parecia um mini-laboratório de todas as teorias que encontrara ao longo do dia.
No caminho de volta, o temporal cessou e o asfalto refletiu as luzes da cidade. Clara compreendeu que nenhuma teoria é receita pronta, mas cada uma oferece lentes diferentes. Unir virtude, propósito, prazer equilibrado, aceitação do inevitável, laços humanos, serviço aos outros e autoconsciência — esse mosaico, ajustado diariamente, talvez seja a arte possível de ser feliz e o mais importante, um ato de escolha a partir da realidade que se vive.
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