Sobre formação de caráter
Sábado eu tomo café em um posto de combustível. Não é todo sábado. A verdade, é quase nunca. Normalmente peço, um café coado na mesa (descobri amargamente que não se deve pedir café passado porque a interpretação vai ser capuccino) e dois pães de queijo.
É divertida a expressão que a garçonete faz todas as vezes que digo que tomo café sem açúcar. Como se ela tivesse descoberto um segredo de que eu seja algum tipo de psicopata, sei lá. Mal sabe ela que tenho outros traços mais evidentes que poderiam fortalecer esse conceito.
Mas eu fui testado, duas vezes, e o resultado foi o mesmo: sou só eu mesmo do jeito que sou.
O fato de eu tomar café sem açúcar ou adoçante não expõe um gosto adquirido por apreciação da bebida, mas uma capacidade inimaginável em ser preguiçoso.
Eu fazia meu doutorado na Université Claude Bernard - Lyon I, no prédio, Camille Jordan que, curiosamente, é o nome de um matemático e não de uma matemática. Inclusive, seu primeiro nome era Marie.
A sala em que eu trabalhava ficava no segundo andar. Os corredores eram clássicos de universidade, onde as paredes eram pintadas até a metade daquele verde sem graça, e a outra parte era branca, ou creme, já não lembro mais. O piso era cinza e meio emborrachado, com pequenos detalhes ornamentais, despejados aleatoriamente sem formar nenhum padrão interessante ou repetitivo.
Nos longos corredores existiam muitas salas, algumas de aula, mas a maioria delas serviam como escritórios para professores e pesquisadores. Também havia uma sala maior para socialização, com uma máquina de café, alguns sofás, uma grande mesa de madeira para refeições coletivas e é claro, um quadro negro para as conversas corriqueiras entre matemáticos.
De vez em quando coisas escritas em giz branco apareciam nesse quadro. Não teve uma vez em que eu olhei para aquelas equações e entendi alguma coisa, mas sempre me perguntei se estava me deparando com alguma grande descoberta, ou fruto de uma conversa aleatória entre pessoas peculiares e interessantes que costumavam habitar aquele lugar.
O café era moderno, foi a primeira vez que eu tinha visto uma máquina de capsulas. Meu orientador tinha em sua gaveta algumas caixas repletas delas e todo dia me dava uma para que eu pudesse satisfazer meu vício diário de cafeína.
Só tinha um problema: não tinha açúcar.
Eu já não sou fã de açúcar e para que eu tivesse disponível para o café, precisaria ir até um mercado, comprar uma quantidade y, trazer para a universidade, deixar em algum lugar, ter uma colher para adoçar e mexer o café, enfim, eram muitas coisas para eu tomar o café doce.
Não compensa, né?!
Por isso, decidi dar uma chance à ideia do café sem açúcar e pouco tempo depois eu já tinha acostumado. Não sei o que me faz mais louco: tomar café sem açúcar ou ter feito doutorado em matemática — eu não sei matemática — em uma universidade francesa no mesmo departamento em que o Cédric Villany trabalhava.
Enfim, tudo isso pra dizer que a preguiça moldou meu gosto pelo café sem açúcar e sou grato por isso.